domingo, 30 de outubro de 2016

O QUE É GIDE?

José dos Santos Souza [1]

Nova Iguaçu (RJ), em 30/10/2016



Conforme descrição do sítio do Governo do Estado do Rio de Janeiro, o programa Gestão Integrada da Escola (GIDE) “é um sistema de gestão que contempla os aspectos estratégicos, políticos e gerenciais inerentes à área educacional com foco em resultados. Tem como objetivo melhorar significativamente os indicadores da educação, tendo como referência as metas do [Índice de Desenvolvimento da Educação Básica] IDEB estabelecidas pelo Ministério da Educação” (SEEduc, 2011a, p. 01).
    A GIDE, na realidade, é um pacote de procedimentos e condutas para gestores educacionais e docentes formulado por uma empresa privada de consultoria de gestão, cuja origem está na Fundação Cristiano Ottoni, criada nos anos 1980, na Universidade Federal de Minas Gerais. Foi a partir desta Fundação que teve início o movimento em prol da qualidade total na educação com a ajuda dos japoneses da Japanese Union of Scientists and Engineers (JUSE). Vicente Falconi e José Martins de Godoy, ambos principais consultores da Fundação Cristiano Ottoni, abandonaram a vida acadêmica para dedicarem-se a um novo empreendimento, em 1998, quando criaram a Fundação de Desenvolvimento Gerencial (FDG), uma empresa privada que tinha como meta se inserir no mercado atuando em um campo mais amplo, passando a atender demandas de diversas empresas em busca de consultoria em gestão, algo que a Fundação Cristiano Ottoni tinha limites para desempenhar ou, pelo menos, de garantir-lhes os rendimentos almejados por esse promissor campo de atuação. A FDG, no entanto, a partir de 2003, restringiu seu campo de atuação a projetos sem fins lucrativos ligados a instituições carentes. Para a continuidade do trabalho de consultoria em gestão para empresas privadas e órgãos públicos, foi criado o Instituto de Desenvolvimento Gerencial (InDG), organização que se tornou líder em consultoria de gestão com foco em resultados no Brasil. Em função de crise intensa entre os dois sócios fundadores do InDG, Vicente Falconi e José Martins de Godoy, o rompimento entre eles em 2012 foi inevitável, o que culminou na saída de Godoy do InDG. A frente do Instituto, Vicente Falconi logo promoveu a mudança de nome da empresa que, a partir de outubro de 2012, passou a chamar-se Falconi Consultores de Resultado, a qual até hoje oferece consultoria da GIDE.
    Conforme consta no sítio da FDG, a GIDE foi idealizada há mais de 15 anos pela professora Maria Helena Godoy e já foi aplicada em diversas redes públicas de ensino do Brasil. Hoje, esse conjunto de clientes engloba as redes estaduais do Ceará, Pernambuco, Sergipe, Minas Gerais, Bahia, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Mato Grosso. A versão original desta ideia nefasta de gestão de sistemas públicos de ensino foi revista em 2011, no auge da crise entre Vicente Falconi e José Martins de Godoy, de modo que, a pretexto de torná-la ainda mais abrangente, robusta e apta a produzir resultados rápidos, rebatizaram-na de “GIDE Avançada”, que passou a abranger aspectos pedagógicos, estratégicos e gerenciais, sempre tendo como foco a melhoria de resultados sem, contudo, esclarecer exatamente de que forma esses resultados devem ser definidos, tampouco por quem (Cf.: FDG, 2014, texto em html). Ao que tudo indica, a GIDE se propõe a ser exatamente esta forma de ordenar e de estabelecer resultados, ou seja, “a GIDE é o modelo de gestão proposto pela secretaria [SEEDuc] para alcançar esses resultados esperados” (SEEduc, 2011b) ou, conforme a imagem a seguir bem expressa, a GIDE é o caminho para a escola chegar aonde quer. Só não fica muito claro quem estabelece o ponto de partida e o de chegada. Uma vez que o próprio caminho já está prescrito, supõe-se que alguém já estabeleceu esses dois pontos, que tanto poderia ser o Governo Estadual do Rio de Janeiro ou, mais precisamente, a própria empresa contratada para gerir o processo. Veja o que a Falconi aponta nesse sentido:
"Os projetos são definidos de acordo com as necessidades específicas de cada cliente. Nosso diferencial é orientar, acompanhar e participar ativamente da implementação do novo sistema de gestão. Durante o processo, o maior desafio a ser alcançado é fazer com que a própria organização aprenda a conduzir sozinha sua nova gestão" (FALCONI, 2016c).
    Vejamos. Se as necessidades da SEEduc foram apresentadas à Falconi sem participação efetiva dos docentes, está claro que as necessidades específicas nas quais esta empresa de consultoria foca seu trabalho a fim de alcançar resultados não são as necessidades desses docentes, muito menos dos estudantes e de seus pais. A GIDE, portanto, é algo que se interpõe entre a SEEduc e outro grupo formado por docentes, estudantes e seus pais. Nesse aspecto, a GIDE funciona como perfeito mecanismo de mediação do conflito de classe.


Figura 01 – Slide Nº 06 da Apresentação “O que a GIDE?”, da SEEduc
Fonte: SEEduc, 2011b



    Pelo que se pode apreender dos documentos disponibilizados pela SEEduc (2011a), o programa da GIDE se inicia com o desenvolvimento de marcos referenciais, os quais consistem em se estabelecer o que se tem, o que se quer e quais as diretrizes para se chegar onde se quer. Desse modo, chega-se a determinado resultado que deve ser analisado com base em dados quantitativos e esta análise deve subsidiar tomadas de decisão acerca da correção de rumos e/ou identificação e conservação das “boas práticas”, sempre tendo como referência o ponto de chegada estabelecido à revelia dos sujeitos envolvidos diretamente na execução do trabalho pedagógico e, talvez, inclusive dos que gerem este trabalho. À propósito, os valores que norteiam a eleição dessas “boas práticas” não são claros. Ao contrário, os documentos apontam que “as escolas vêm, ao longo do tempo, mostrando sua preocupação com a formação da cidadania e com a responsabilidade social. Porém, há lacunas na mensuração da sua eficiência nestes objetivos”. Para permitir a mensuração do alcance da formação integral do aluno[2], a GIDE estabelece o Índice de Formação de Cidadania e Responsabilidade Social (IFC/RS). Segundo a SEEduc, reproduzindo os “conhecimentos” repassados pela Falconi, “este indicador é um diagnóstico que fornece à escola informações necessárias a uma análise consistente e profunda sobre seus resultados e meios que influem nesses resultados”. Para a SEEduc, “o IFC/RS mede o desempenho da escola nos resultados tangíveis no cumprimento da sua missão” (SEEduc, 2011a, p. 01). Falta, no entanto, o convencimento de que esses parâmetros estabelecidos de forma tão heterônoma possam de fato levantar resultados capazes de mobilizar e satisfazer docentes, estudantes e seus pais para um comprometimento efetivo com o trabalho pedagógico das escolas.
    Na realidade, o plano estratégico em que consiste a GIDE nada mais é do que uma pedagogia política para educar a gestão escolar para as práticas gerenciais flexíveis e controladas de modo centralizado. Essa pedagogia política visa conformar as comunidades escolares nos limites circunscritos pela SEEduc, ao mesmo tempo em que busca direcionar esforços dos sujeitos dessas comunidades escolares para o cumprimento de determinadas metas estabelecidas a sua revelia, com a finalidade de alcançar resultados quantitativos, partindo do pressuposto de que tais quantidades, em si, expressam determinada qualidade. Isto fica bastante claro quando se observa os elementos que compõem o IFC/RS (Figura 03). Da mesma forma, quando se observa a dinâmica de trabalho proposta pela GIDE, percebe-se que a SEEduc, ao estabelecer um protocolo de ações padronizadas, seu maior mérito é muito menos os resultados propriamente ditos do que o controle do cotidiano das escolas e de seus profissionais. Este é o sentido mais concreto dessa burocratização de novo tipo. A dinâmica para isto é simples:

"A Escola deverá analisar bimestralmente seus resultados e, quando necessário, identificar as causas do mau desempenho. Quando os resultados não são alcançados, a escola deve identificar os desvios de resultado em relação às metas, reunir os professores para encontrar as causas do mau desempenho e definir contramedidas necessárias para reverter o fato. Quando as escolas obtiverem bons resultados, é importante também identificar e registrar as práticas que levaram ao bom desempenho" (SEEduc, 2011a, p. 03).

    O caminho utilizado pela GIDE para ajudar as escolas a alcançarem metas que sequer estabeleceram e a resolver problemas que jamais se colocam, parece ser o do controle e da vigilância disfarçado por um aparato tecnológico sofisticado, assim como o principal elemento de conformação dos sujeitos parece ser a promoção da competitividade entre si. Deve-se observar também que tudo que não se enquadra no que está estabelecido a priori como “boa prática”, ou seja, tudo o que não leva a resultados favoráveis ao alcance de metas pré-estabelecidas é considerado como desvio que precisa ser tratado. Por outro lado, tudo o que favorece o alcance das metas, ou seja, as ações consideradas bem-sucedidas, precisam ser padronizadas e conservadas. O curioso é que não se discute a meta em si em momento algum.
    Segundo a Falconi (2016c), sua estratégia é diretamente com seus clientes, “com o objetivo de identificar presencialmente os problemas e suas causas”. Seu método de atuação baseia-se no PDCA, também chamado de Ciclo de Deming ou Ciclo de Shewhart, difundido em todo o mundo. Trata-se de uma ferramenta de gestão que visa a promoção de melhoria contínua de processos por meio da execução de quatro ações: planejar (plan), fazer (do), checar (check) e agir (act):
"PLAN – Identificamos junto com os clientes os problemas prioritários da organização, analisamos suas causas fundamentais e traçamos um plano de ação adequado.
DO – ajudamos o cliente a colocar o plano em prática, fornecendo o conhecimento e apoiando a execução das ações planejadas.
CHECK – Ajudamos o cliente a acompanhar todas as ações planejadas e a vefiricar se as metas foram atingidas.
ACT – Ajudamos o cliente a elaborar planos adicionais para garantir que as metas preestabelecidas sejam atingidas, além de padronizar as melhores práticas". (FALCONI, 2016c). 

Figura 02 – Slide Nº 07 da apresentação “O que a GIDE?”, da SEEduc
Fonte: SEEduc, 2011b

    A partir do que está expresso na Figura 02, observe-se que todas as ações seguem no sentido de educar sujeitos da Rede Estadual de Ensino do Rio de Janeiro para um padrão de conduta tal que atenda aos interesses de racionalização de aplicação de recursos, ao mesmo tempo em que estabeleça novo tipo de conformação ética e moral dos docentes, mais de acordo com os interesses do estágio atual de desenvolvimento do capital, especialmente no que diz respeito à relação entre Estado e sociedade. Faz parte desta pedagogia política a conformação e a despolitização do trabalho pedagógico, concebido como prática social híbrida, passível de ser harmonizado, onde não há espaço para o debate acerca do conflito de classes.
    Conforme a empresa define, sua forma de trabalho consiste em transferir conhecimento gerencial com foco em resultados por meio da implementação de um sistema de gestão onde cada profissional deve conhecer seu papel para que os resultados sejam obtidos (FALCONI, 2016a). Dizem eles que essa forma de trabalho envolve as pessoas no estabelecimento de metas desafiadoras de modo que o resultado é muito mais consistente e duradouro, pois baseia-se no crescimento e desenvolvimento da equipe do cliente, no decorrer do projeto. O que não fica claro é o juízo que se faz de crescimento e de desenvolvimento da equipe, considerando que esta equipe é um conjunto de docentes. Isto fica ainda mais obscuro quando afirmam que seus projetos possuem objetivo ligado a determinado indicador financeiro. Segundo esta empresa, o que capacita a equipe para solucionar problemas é justamente a transferência de conhecimento dos consultores para os sujeitos da escola: gestores e docentes. Ao que parece, a atuação da empresa é justamente dizer exatamente o que todos devem fazer: “A Falconi não entrega somente relatórios, trabalha de forma conjunta com a equipe do cliente na implementação das ações para atingir o resultado” (FALCONI, 2016a).

Figura 03 – Árvore do IFC/RS
Fonte: SEEduc, 2011b, p. 02
    
    Ora, o problema central da GIDE não consiste na proposta de se estabelecer um marco referencial para fundamentar um bom diagnóstico e, posteriormente, traçar metas, estabelecer planos de ação, executá-lo, acompanhar seus resultados, para depois proceder uma avaliação bem fundamentada e, por fim, tomar decisões. O problema da GIDE é tudo isso ser estabelecido sob pressupostos positivistas, permeado de uma postura conservadora, pouco aderente às práticas verdadeiramente democráticas. Vide os elementos que compõem o IFC/RS (Figura 03) estabelecidos à revelia das inúmeras comunidades escolares envolvidas.
    Independente da pertinência de alguns desses elementos que compõem o IFC/RS, é fato que tanto os docentes, quanto estudantes e seus pais não participaram da formulação deste índice, tampouco da definição dos elementos que devem constitui-lo nem do peso de cada um deles no cálculo do índice. Cremos, inclusive, que nem mesmo os diretores de escolas tiveram oportunidade de participar da elaboração desses elementos componentes do IFC/RS.
    No Estado do Rio de Janeiro, a GIDE conta ainda com uma espécie de capataz que figura como inspetor escolar que zela pelo bom andamento da implantação e desenvolvimento do método de trabalho criado pela Falconi. Trata-se do Agente de Acompanhamento da Gestão Escolar (AAGE) [3], uma função gratificada preenchida exclusivamente por servidores públicos efetivos integrantes das carreiras do Magistério da SEEduc, com carga horária semanal de 40 horas, das quais 32 são dedicadas à visitação às escolas e as oito horas restantes para planejamento e reuniões. Sua principal atribuição é de preparador e integrador das ações ligadas à GIDE junto às escolas. Nesse sentido, cabe ao AAGE criar um clima de cooperação entre as pessoas levando as escolas a interagirem na busca de metas e resultados sem que, contudo, esse profissional tenha autonomia para interferir na formulação de tais metas, nas estratégias de ação, tampouco na metodologia de levantamento de resultados. Tudo isso está prescrito pelo método estabelecido pela Falconi. No processo de desenvolvimento da GIDE, são atribuições do AAGE: I) treinar docentes e gestores escolares para que executem as ações prescritas nos planos pedagógicos e ambiental, normalmente construídos segundo a orientação da SEEduc; II) repassar para docentes e gestores escolares os conhecimentos disponibilizados pelos consultores da GIDE, de modo a dar-lhes suporte metodológico, por meio de realização de atividades de apoio e sistematização dessas atividades; III) orientar gestores escolares, docentes, estudantes e seus pais na identificação dos problemas da escola, levando-os à definição de metas e elaboração de planos de ação para melhoria dos resultados. O AAGE também deve acompanhar a execução e eficácia das ações propostas nos planos de ação, segundo os critérios estabelecidos pela Falconi, com vistas ao alcance das metas estabelecidas à priori pela implantação do IFC/RS. Por fim, também cabe ao AAGE orientar, segundo os critérios da Falconi, a definição de ações corretivas para os desvios identificados, bem como orientar o registro (conservação) e a disseminação das práticas bem-sucedidas (Cf. SEEduc, 2014).
    Assim, à revelia do que pensam ou almejam docentes, estudantes e seus pais ou até mesmo os gestores de unidades escolares, a partir da implantação da GIDE, a Falconi passa a implantar um modelo de gestão educacional na Rede Estadual de Ensino do Rio de Janeiro que se encaixa perfeitamente no que foi indicado pela CEPAL, a UNESCO e o MEC:
"[...] medir o desempenho, alocar recursos com maior eficiência e avaliar os resultados. É necessário pensar em políticas dirigidas à profissionalização e ao desempenho dos educadores, que passem por uma elevação de suas responsabilidades, incentivos, formação permanente e avaliação de seu mérito; em políticas de compromisso financeiro da sociedade com a educação, com a capacitação e com o esforço científico-tecnológico, que incluam financiamento de diversas fontes, e também considerem a ideia de uma revitalização dos bancos de desenvolvimento, que desempenharam um papel importante na expansão latino-americana nas décadas passadas, e que hoje poderiam retornar esse papel, voltando sua ação para as tarefas de formação de recursos humanos e para o desenvolvimento do potencial científico tecnológico" (CEPAL. UNESCO. MEC, 1993, texto em html). 
    Na medida em que a GIDE se institui como uma proposição de melhoria do desempenho das escolas da Rede Estadual de Ensino do Rio de Janeiro na avaliação do SAEB, é natural que um número considerável de docentes e gestores educacionais depositem nela alguma esperança, aderindo a proposta. Entretanto, muitas vezes essa adesão não ultrapassa o nível de um pensamento desprovido de consciência crítica, que se desenvolve de maneira desagregada e ocasional, sem organicidade. Seria um comportamento típico de quem participa de uma concepção de mundo “imposta” mecanicamente pelo ambiente exterior – uma ordem de pensamento do senso comum.
    A GIDE, enquanto um planejamento estratégico de gestão do trabalho pedagógico aplicado à toda a Rede Estadual de Ensino do Rio de Janeiro, tem se encarregado de formular determinada norma de conduta, determinado padrão de procedimentos técnico-administrativos e determinado sistema de controle do trabalho que sintetizam a concepção de mundo burguesa e sua forma de reagir à crise estrutural do capital na atualidade, traduzindo para uma linguagem bem mais palatável ao ambiente escolar os princípios fundamentais do gerencialismo. Em última análise, a GIDE concretiza a concepção de mundo burguesa e suas demandas atuais para a mediação do conflito de classe na forma do senso comum, levando gestores escolares, docentes, estudantes e seus pais a interiorizarem seu projeto de gestão escolar, com seus valores e normas, de modo a assegurar, por meio da combinação equilibrada de persuasão e coerção, o esquema de dominação que a GIDE concretiza por meio da direção política que dá à gestão escolar. De acordo com Freitag (1980, p. 41), isto ocorre porque:
"Sendo a sociedade política o lugar do direito e da vigilância institucionalizada, será ela a encarregada de formular a legislação educacional, de impô-la e fiscalizá-la. Ao fazê-lo, ela absorve a concepção do mundo da classe dominante, a interpreta e a traduz para uma linguagem adequada, para que seja legalmente sancionada. Assim, em um certo sentido, a legislação educacional já é uma das formas de materialização da filosofia formulada pelos intelectuais orgânicos da classe dominante. Toda classe hegemônica procura concretizar sua concepção de mundo na forma do senso comum, ou seja, fazer com que a classe subalterna interiorize os valores e as normas que asseguram o esquema de dominação por ela implantado. Um dos agentes mediadores entre a transformação da filosofia da classe hegemônica em senso comum da classe subalterna é o sistema educacional, dirigido e controlado pelo Estado."
    A propósito, o senso comum é o campo mais profícuo para as ideologias e o ambiente escolar é um dos agentes centrais utilizados pela burguesia para formar o conjunto da sociedade civil e, assim, manter sua hegemonia não somente pelo exercício da direção política, mas pela dominação. Neste aspecto, a GIDE traduz os interesses da contrarreforma burguesa diante da crise estrutural do capital, na medida em que imprime no ambiente escolar uma determinada forma de interpretar os problemas educacionais e suas soluções de acordo com a perspectiva da redefinição do papel do Estado e da reorientação do uso do fundo público, tornando-a senso comum. Assim, a partir da GIDE, as rotinas típicas do gerencialismo passam a naturalizar-se no ambiente escolar, como uma pedagogia política que educa o senso comum e constrói o consenso.
"[...] o Estado, depois de formular as leis o nível da sociedade política, se encarrega também de sua materialização na sociedade civil, fazendo com que haja as condições materiais e pessoais de sua implantação e que a mesma concepção do mundo absorvida em lei agora se reflita nos conteúdos curriculares, na seriação horizontal e vertical de informações filtradas, na imposição de um código linguístico (o das classes dominantes), nos mecanismos de seleção e canalização de alunos, nos rituais de aprendizagem impostos ao corpo discente pelo corpo docente, etc." (FREITAG, 1980, p. 42 – grifos da autora).
    Uma reação consistente à GIDE dificilmente teria origem no interior das escolas. Isso seria necessariamente uma tarefa do partido político comprometido com os interesses históricos da classe trabalhadora, de modo que seus intelectuais estivessem em um movimento cultural unitário com o conjunto dos trabalhadores em educação, pensando seus problemas concretos, em especial aqueles problemas decorrentes da intensificação da precariedade do trabalho escolar decorrente das reformas gerenciais. Para Gramsci (1989, p. 18),
"[…] a organicidade de pensamento e a solidez cultural só poderiam ocorrer se entre os intelectuais e os simplórios se verificasse a mesma unidade que deve existir entre teoria e prática, isto é, se os intelectuais fossem, organicamente, os intelectuais daquela massa, se tivessem elaborado e tornado coerentes os princípios e os problemas que aquelas massas colocavam com a sua atividade prática, constituindo assim um bloco cultural e social."
    Seria central para este partido político formular a crítica à GIDE, situando-a no contexto sócio-histórico, de modo a explicitar a relação dialética entre esta estratégia gerencialista do Governo do estado do Rio de Janeiro e a reforma do Estado. Mas este movimento cultural só poderia originar uma reação à GIDE se houvesse o compromisso dos intelectuais desse partido com a tarefa de instrumentalizar o senso comum que paira no cotidiano das escolas com elementos teóricos e práticos capazes de subsidiar docentes ou até mesmo gestores escolares para a construção de uma visão crítica, a ponto de propiciar-lhes uma consciência de si e de seu trabalho no desenvolvimento de procedimentos e condutas prescritos pela GIDE, de modo a dar-lhes organicidade de pensamento.


Notas:

[1] José dos Santos Souza é Doutor em Sociologia (UNICAMP). Atua como professor associado de Economia Política da Educação e de Política Educacional do Departamento de Educação e Sociedade do Instituto Multidisciplinar da UFRRJ, onde coordena o Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares (PPGEduc) e o Grupo de Pesquisas Sobre Trabalho, Política e Sociedade (GTPS).

[2] Ao que parece, por formação integral, a GIDE concebe a formação para a cidadania com responsabilidade social. Ocorre que sequer existe uma discussão sobre o que se entende por formação integral. A ideia de escola unitária, de omnilateralidade, de politecnia, por exemplo, são simplesmente ignoradas. Nem mesmo uma concepção de formação integral contraposta é apresentada. Em seu lugar fica uma ideia vaga e pouco consistente de formação integral.

[3] Certa vez, numa discussão sobre a GIDE, determinado docente da Rede Estadual de Ensino do Rio de Janeiro se referia ao AAGE como “capitão do mato”. Pareceu-me bastante adequada a metáfora, afinal, esse era o nome dado, originalmente, a um empregado público da última categoria encarregado de reprimir os pequenos delitos ocorridos no campo. No caso brasileiro, no entanto, no período da escravidão, esse empregado público de última categoria tinha como tarefa principal a captura de escravos fugitivos. No caso do AAGE, trata-se daquele funcionário que tem por tarefa principal zelar para que tudo nas escolas ocorra conforme as diretrizes da GIDE, inspecionando e orientando gestores e docentes para as devidas correções em caso de desvios cometidos na busca de alcançar metas. Sem qualquer autonomia, esse profissional age quase como um inspetor escolar que registra os problemas, orienta os ajustes e coleta dados escolares.



Referências:


CEPAL. UNESCO. MEC. Educação e conhecimento: eixo da transformação produtiva com equidade (uma visão sintética). 1993. Brasília: MEC/Inep, 1993. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/me001682.pdf, acesso em: 23/09/2016.

FALCONI CONSULTORES DE RESULTADO. Como trabalhamos. Belo Horizonte: 2016a. Disponível em: https://www.falconi.com/quem-somos/como-trabalhamos/, acesso em 23/09/2016.

FALCONI CONSULTORES DE RESULTADO. InDG muda o nome para “Falconi Consultores de Resultado” e caminha para se tornar uma das maiores do mundo. Belo Horizonte: 2016b. Disponível em: https://www.falconi.com/flcn_releases/indg-muda-o-nome-para-falconi-consultores-de-resultado-e-caminha-para-se-tornar-uma-das-maiores-do-mundo/, acesso em 23/09/2016.

FALCONI CONSULTORES DE RESULTADO. O método PDCA. Belo Horizonte: 2016c. Disponível em: https://www.falconi.com/quem-somos/o-metodo-pdca/, acesso em 23/09/2016.

FUNDAÇÃO DE DESENVOLVIMENTO GERENCIAL – FDG. Conheça a GIDE Avançada. Nova Lima (MG): 2014. Disponível em http://www.fdg.org.br/gide-avancada/ acessa em 23/09/2016.

GOVERNO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. SECRETARIA DE ESTADO DE EDUCAÇÃO. Informativo GIDE. Rio de Janeiro: SEEduc, 2011a. Disponível em http://download.rj.gov.br/documentos/10112/553225/DLFE-37306.pdf/InformativoGIDE.pdf, acesso em 23/09/2016.

GOVERNO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. SECRETARIA DE ESTADO DE EDUCAÇÃO. O que é a GIDE. Rio de Janeiro: SEEduc, 2011b(?). Disponível em: http://pt.slideshare.net/veresaber/o-que-e-a-gide, acesso em 23/09/2016.

GOVERNO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. SECRETARIA DE ESTADO DE EDUCAÇÃO. Processo n.º: E-03/001/500, de 17 de janeiro de 2014. Edital de processo seletivo interno com vistas ao provimento da função gratificada de Agente de Acompanhamento da Gestão Escolar. Rio de Janeiro: 2014. Disponível em: https://www.concurso.ceperj.rj.gov.br/concursos/2014/seeducpsi/docs/agente.pdf, acesso em: 23/09/2016.

GRAMSCI, Antonio. Concepção Dialética da História. (8a Edição). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989. 341 p.

INSTITUTO AQUILA. Briga de Gurus. Belo Horizonte: 2011. Disponível em: http://www.institutoaquila.com.br/Noticias/ISTOEDinheiro_BrigaGurus.html, acesso em 23/09/2016.